quinta-feira, 26 de junho de 2014

Internet: o paradigma da escolha

“Meu pai era um homem de hábitos simples. Quando chegava em casa, gostava de se sentar no sofá, propositadamente colocado na frente da TV, pegar o controle remoto e escolher pelo menos um dos canais que estivesse com uma boa imagem. Geralmente era o SBT ou a Globo. Escolhido o canal, seja por um programa que tivesse passando ou por não estar no comercial, meu pai seguia assistindo. Repousava o controle ao lado e passava horas assim. Minha mãe gostava de novela. A partir das 19h ela controlava a tv. Era na Globo ou na Manchete, ela passava a noite encostada no braço do sofá e raramente mudava de canal. Chegava a ver até o Jornal Nacional, que não gostava, para não perder a novela.”

Em uma época que a TV a cabo não era comum no Brasil, surgiu uma mídia que se preocupava em ocupar todo o dia de um possível telespectador, pensando o que apresentar em determinado horário para um possível público específico. O Boni, criador do Padrão Globo de televisão, em uma entrevista, explicava como os conteúdos das diferentes novelas diárias se relacionavam com os diferentes públicos. Assim, a novela das 18h era para idosos e crianças, por isso tinham temáticas leves e joviais. A das 19h era mais cômica, ajudando um possível trabalhador que chegasse em casa. Relaxado, esse espectador poderia usufruir de um conteúdo mais denso, como o jornal e a novela das 20h.

Essa preocupação tem fundamento. Afinal, a relação entre o tempo da TV e do espectador era muito próxima. Era preciso se apressar para ver o início da novela e saía de casa atrasado para não perder o finalzinho da Sessão da Tarde. Até nossos corpos se condicionavam a suspender certas necessidades, na espera daquele som característico: o plim-plim. Por que essa relação tão intensa? Simples, na TV o tempo vinha carregado com a fatalidade. As coisas, no geral, não se repetiam. O episódio, o filme (a não ser que seja Lagoa Azul), o jornal, nada se repetia. O tempo era o da TV, não o do espectador.

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“Eu chego em casa e começo a desmontar minha mochila. Retiro o laptop, o carregador e uns livros, materiais que usei durante todo o dia. Depois, sento no sofá e ligo a TV. Ligado a ela, se encontra outro computador. Com um mouse sem fio, navego até o YouTube e procuro pelos canais que eu sigo. Vejo inúmeros vídeos não assistidos. Desço a barra até o mais antigo. Não me interessa. O segundo, porém, é bastante promissor, assisto. Depois de 5 minutos ele acaba, e eu escolho outro. Este é mais longo, quase meia hora. Após, escolho outro, e outro, e outro. A cada um que termina eu escolho o próximo. Durante uma hora eu devo ter assistido a uns 6 vídeos de diferentes canais. Assistindo a um deles, surgiu uma curiosidade. Pego meu laptop e procuro sobre o assunto enquanto termino de assistir. A cada momento devo escolher o que vou ver nos próximos minutos, nas próximas horas ou mesmo no futuro, salvando o vídeo para mais tarde.”

O fenômeno descrito acima não é uma característica específica do YouTube. A internet inteira oferece uma quantidade avassaladora de conteúdo, não importando o formato. O YouTube possui uma estimativa de 300 milhões de vídeos, o Spotify oferece milhões de músicas… Estamos cercados de possibilidades. Somos chamados, o tempo todo, a escolher nosso próximo passo, nosso próximo vídeo, nossa próxima música. Nossa experiência de entretenimento passou a ser construída de forma intensa por nossas próprias escolhas. A tutela de um canal de TV passa a ser substituída por um enorme acervo audiovisual. Este, não só é imensamente vasto, muito maior do que um ser humano poderia consumir em uma vida, como também é preservado. Os conteúdos não “passam”, eles são armazenados e distribuídos. Não importa se é o último episódio de Game of Thrones ou a Xuxa conversando com a pobre Cláudia. A partir do momento que algo entra na internet, dificilmente sairá dela (né, Cicarelli?). As coisas não se perdem, vão sendo adicionadas infinitamente em servidores mais e mais potentes ou disseminados em diversos computadores pessoais. Assim, esse conteúdo pode ser acessado quando e onde queremos (se a rede deixar), sem o medo de ser perdido. O conteúdo passa a ser submetido à nossa vontade, ao nosso tempo, à nossa escolha.

Agora, se possuímos tanto conteúdo à nossa disposição, como ainda nos sentimos entediados ou desanimados? Uma mudança tão profunda na nossa relação com a informação, seja ela vídeo, áudio ou texto, nos apresenta outras questões que devem ser vistas de forma cuidadosa. Por exemplo: se por um lado podemos escolher o que assistir, por outro, estamos sendo “obrigados” a escolher. Afinal, Sartre já falava do limite da liberdade: ela própria. Ou seja, não podemos abrir mão da nossa condição livre. Com a internet, somos capturados por uma eterno escolher. A cada passo, infinitas outras direções se apresentam. Assim, se o antigo modelo da TV nos guiava por horas, a internet nos abre caminhos a cada cinco minutos. Respectivamente, podemos comparar essas situações a um corredor fechado e um grande campo aberto. Ambos podem ser confortáveis ou opressores, variando muito de acordo com o momento. Afinal, tanto pensar em cada passo do caminho quanto se deixar levar até o inesperado podem ter o seu valor e oferecer experiências muito enriquecedoras.

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